O eu anterior
Já fui outro em outra vida
antes desta e deste ser.
Quando a lua dos bosques vem
de fadas, gnomos encher,
um sonho aparece em mim,
qual luz brilhando sem fim
algures em mim, à distância,
em mares que então conhecia
e em terras sem lugar
onde o dia é outro dia.
Sonho, e tal como o sopro
que na brasa a chama faz,
meu peito acende um passado
que lembrar não sou capaz.
Como a brasa incandescente
em que o fogo é aparente,
gasto a riqueza vazia
de um mudo sentido, assim.
Como a chuva cai no mar,
esvaio-me dentro de mim.
Há labirintos de Eu.
Sou meu ser desconhecido.
Tenho, e não sei porquê,
Da visão outro sentido
(diferente da vã visão
de minha alma em cisão
com o que me cerca a vista)
onde ver é conhecer,
e a vida é fé e dor
que a dúvida faz correr.
Minha vida só é feliz
quando em mim não sinto vida;
tal como o aroma das flores
delas é alma tecida,
um espírito corporizado
de mim mesmo foi herdado,
espírito da minha alma
carne-aroma de dois Eus;
perda e riqueza do ser
que se partilha com Deus.
Fernando Pessoa
Já fui outro em outra vida
antes desta e deste ser.
Quando a lua dos bosques vem
de fadas, gnomos encher,
um sonho aparece em mim,
qual luz brilhando sem fim
algures em mim, à distância,
em mares que então conhecia
e em terras sem lugar
onde o dia é outro dia.
Sonho, e tal como o sopro
que na brasa a chama faz,
meu peito acende um passado
que lembrar não sou capaz.
Como a brasa incandescente
em que o fogo é aparente,
gasto a riqueza vazia
de um mudo sentido, assim.
Como a chuva cai no mar,
esvaio-me dentro de mim.
Há labirintos de Eu.
Sou meu ser desconhecido.
Tenho, e não sei porquê,
Da visão outro sentido
(diferente da vã visão
de minha alma em cisão
com o que me cerca a vista)
onde ver é conhecer,
e a vida é fé e dor
que a dúvida faz correr.
Minha vida só é feliz
quando em mim não sinto vida;
tal como o aroma das flores
delas é alma tecida,
um espírito corporizado
de mim mesmo foi herdado,
espírito da minha alma
carne-aroma de dois Eus;
perda e riqueza do ser
que se partilha com Deus.
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